Usando etnografia aplicada para transformar observação em estratégia de valor no cenário de serviços.

Como transformar observações do dia a dia em estratégias que realmente geram valor? Essa é a promessa da etnografia quando aplicada ao UX Research. Mais do que entrevistar usuários, trata-se de entrar no campo, observar relações, mapear barreiras invisíveis e traduzir histórias em caminhos práticos para produtos e serviços.
Neste texto, compartilho uma experiência conduzida em uma cidade do Norte do Brasil, onde a expansão da rede de água e esgoto exigia mais do que obras: era preciso reconstruir confiança e criar novas propostas de valor para comunidades historicamente negligenciadas.
Ao longo do texto, você irá encontrar a partir de um case prático sobre como a etnografia ajuda a revelar barreiras de confiança que não aparecem em surveys e lições práticas de escuta e imersão que podem ser aplicadas a pesquisas de UX.
Adendo: se você já atua com pesquisa, design ou produto ou deseja explorar estudos imersivos como ferramenta de inovação, este relato traz aprendizados que vão além do campo e se conectam diretamente às decisões de negócio.
As condições da pesquisa
A entrega de água e esgoto reforçou uma operação de 20 anos, carregando um legado negativo de gestões anteriores.
O desafio não era apenas entregar água, mas recriar uma proposta de valor para públicos diversos: clientes antigos, novos, em obras, críticos, B2B, indo além do tangível “água na torneira”.
O objetivo era mapear barreiras de confiança e adoção dos serviços.
Mergulhar nas dores dos clientes
Cidade do Norte, 2022.
Estou em um assentamento rural, numa das áreas periféricas da cidade, no oitavo conjunto habitacional. O sol é escaldante, o chão irregular e meu estômago embrulhado — percebo que me excedi com a quantidade de lactose ingerida e a intolerância dava seus sinais. Mas estava novamente ali: era mais um estudo etnográfico.
No mundo que habitava naquele momento, uma entrega de água e esgoto havia vencido uma licitação de 20 anos, assumindo um legado negativo de gestões anteriores. Suspender o abastecimento irregular não resolveria o problema. Era preciso ir além: entender pessoas, histórias e expectativas, e transformar água e esgoto em símbolo de cidadania.
O que a companhia desejava saber era, na medida em que vivemos nossa vida com outros, e esses outros são pessoas com quem habitamos (ou coabitamos) o mundo, como criar novas relações?
Recrutando
Um campo intenso de 3 dias. Como diria a antropóloga Veena Das (2021), o ato de escrever é feito dentro de uma forma de vida e não fora dela. Com isso, a autora chama a atenção que, ao pesquisar algo, estamos pensando no mundo que habitamos.
Os perfis de conhecimentos e stakeholders foram derivados conforme o estágio da relação com a marca, focando em como a experiência muda conforme o estágio, o histórico e o papel do cliente. Os perfis eram:
- Em expectativa: ainda não sentiram o impacto das obras, mas já estão no radar da expansão.Em impacto: vivenciam transtornos e barreiras do dia a dia durante as obras.Pós-obra: já compararam “antes e depois”.Antigos (legado ruim): carregam memórias negativas.Novos ou retomados: recém-chegados ou antigos inadimplentes.B2B com poço próprio: demandam soluções personalizadas e atenção à eficiência.Com reclamações de cobrança: buscam explicações claras sobre tarifas.Líderes comunitários e influenciadores: formadores de opinião podem ampliar percepções.Haters e críticos ativos: análises críticas públicas.
Após o mapeamento prévio de perfis e compreender o histórico de cada grupo, a pergunta seguinte era inevitável: como transformar essas observações dispersas em insights confiáveis e compartilháveis? Como manter a riqueza da pesquisa qualitativa sem perder ritmo e aplicabilidade?
A complexidade do campo não estava apenas nas pessoas que encontrávamos, mas também na interpretação que fazíamos delas e essa interpretação precisava ser coletiva, para não se perder nas lentes individuais.
Na próxima sessão apresento como o ritual diário de debriefing consolidou como estratégia central, transformando impressões soltas em um diário coletivo de insights, capaz de guiar decisões de produto, CX e comunicação.
O hack do debrief: transformar impressões soltas em insights coletivos
Imersão com as equipes da companhia
Sigo acompanhando a equipe de serviço de água e esgoto. É uma jornada com exercícios às 07h, exercícios em um galpão. Percebo que o sedentarismo fez várias vítimas, eu inclusive. Ali, às 07h da manhã, era o primeiro contato da equipe com os funcionários da companhia.
Construir relações de proximidade naquele momento garantiam que a circulação por territórios na cidade do Norte, fossem frutíferos. Aprofundar conversas, construir relações sem pressa e em espaços informais exigia, como escreveu Stefane Beaud e Florence Weber (2007, p.84): aliados que ajudariam a penetrar no meio, atuando como cartas de referências junto àqueles que poderiam mostrar-se reticentes para uma conversa.
O primeiro desafio era construir relações. O segundo, ao fim do primeiro dia, estava aqui:
Mas como reunir percepções garantindo a qualidade das observações? E que então os insights e percepções não sejam exclusivos mas partilhados por todos?
O risco de que as observações da equipe possuíssem um viés individual eram imensos, tornando a confiabilidade dos achados frágil. Poderia ocorrer que uma observação pontual torne-se recorrente pela visão de uma pessoa e não de outra.
Para isso, o ritual diário consistia reunir a equipe (produto, CX e pesquisa) a partir de saturação teórica. Debriefings diários permitiam que as mesmas cenas fossem revividas, com cada pessoa a narrando. A pessoa seguinte adicionava novos aspectos, o que permitiu criar um diário coletivo com detalhes contextuais e com checagem coletiva dos achados.
Com mais pessoas observando, um mesmo comportamento era lido como de caráter prático (CX), estratégico (produto) e relacional (pesquisa). Além disso, anotações diárias permitiam cavar uma trilha transparente do raciocínio da equipe.
Os desafios naquele momento não eram apenas negociar a presença em campo, mas criar mecanismos de interpretação coletiva: construir significado junto e não sozinho. A segunda camada do desafio estava em preservar a densidade da pesquisa qualitativa sem perder a agilidade exigida por projetos de UX e serviços.
Nesse cenário, o papel do UX Researcher foi atuar como conector: articular olhares, facilitar diálogos e criar condições para que os vieses individuais fossem neutralizados pelo coletivo.
A estratégia para seguir adiante era que observaríamos o cenário, quem estava, em que momentos, e quais atividades realizavam. Conversas informais em filas, mercados ou enquanto tomavam água eram bem-vindas.
Hack do mapeamento de poder: escuta prolongada + contexto histórico

Seguimos acompanhando a equipe. Chego na primeira parada, a casa de Dona Cida. Com um sorriso, aceita conversar. A fala ao final de Dona Cida era somente uma:
“Há 20 anos que moro aqui, e é a primeira vez que alguém vem conversar comigo.”
Essa conversa de 30–40 minutos me permitiu duas coisas.
Primeiro, mapear prioridades da comunidade para criar ofertas de serviços mais equitativos.
E segundo e mais importante: entender as relações de poder no território.
As gerações de pessoas negras e indígenas na comunidade viveram sem acesso à água encanada e moradia própria. Os 20 anos de Dona Cida refletem não apenas a falta de infraestrutura, mas também a fragilidade no vínculo emocional com a companhia de água e esgoto, herdada de seus pais e avós. Essa insatisfação histórica se prolonga por gerações, impactando emocional e socialmente a relação com o serviço.
Dinâmica política contemporânea
Atores com influência:
- Líderes comunitários: articulam comunicação com a companhia, moldam opiniões locais e podem desconstruir ou reforçar legados negativos.Imprensa e redes sociais: amplificam críticas e elogios, exigindo uma gestão proativa da reputação da empresa.
Atores impactados:
- Moradores: Vivenciaram históricas desigualdades, como Dona Cida, que lidam com desconfiança, insatisfação prolongada e vulnerabilidade emocional.Comunidade em geral: experiências de falhas operacionais e falta de comunicação geram fricção e afetam a adoção de novos serviços.
Durante o projeto, identifiquei situações críticas: a empresa frequentemente quebrava calçadas e casas dos clientes sem aviso prévio, retornando depois com qualquer tipo de reparo improvisado. Era dessa forma que o legado se manifestava: negação do direito ao reparo com qualidade.
Comunicação e confiança
Em um novo mundo, a marca provavelmente tratará essas pessoas como cidadãos com direito à decisão, e não apenas como pontos de toque de obra a serem contornados rapidamente.
Não ser tratado como cidadão com direito à decisão causa um efeito pernicioso para a performance dos canais da marca.
Muitos clientes, ao não se sentir valorizados, buscaram informações fora dos canais oficiais da companhia. A preferência era por parceiros comunitários, canais informais e líderes comunitários. Isso gerou conflito entre a expectativa da empresa (uso do digital) e o comportamento real do cliente.
Diferenciar informações práticas de insights estratégicos foi crucial. Por exemplo, a comunidade se comunicava via WhatsApp e carros de som, enquanto a empresa enviava SMS. Entender esses fluxos permitidos desenhar jornadas de comunicação mais eficazes.
A partir da percepção de que havia barreiras de confiança sobre o tratamento dos clientes, isso permitiu identificar os canais alternativos e gerar ações educativas da empresa.
Uma substituição brusca era impensável, o percurso seria integrar uma lógica digital ao repertório já existente do cliente. Cada intervenção será comunicada com antecedência.
Esse movimento impediu o atrito na adoção do digital, ampliou a percepção de confiança no canal oficial e deu insumos para criar campanhas de educação mais alinhadas à experiência real dos clientes.
A partir dos insights de campo, traduzimos observações em ações concretas:
- Mapear stakeholders e jornadas, incluindo o golden path da experiência do cliente.Comunicar previamente sobre obras e reparos, integrando canais digitais e tradicionais.Engajar comunidades marginalizadas de forma respeitosa, considerando diversidade e equidade.Fortalecer programas educativos e culturais, como museus de água e projetos juvenis.Garantir suporte e atendimento humanizado, valorizando o patrimônio e a história dos clientes.
Soluções para novo mundo, velhos perfis e novas relações de valor

Dias de imersão e observação, entrevistas mantém o sabor que cada grupo de clientes enxerga o serviço de forma distinta, moldado por histórias, relações de poder e experiências passadas.
A etnografia permitiu traduzir essas experiências em perfis concretos, conectando necessidades, expectativas e significados simbólicos a propostas de valor estratégicas.
Nesta seção, apresento como insights de campo se transformam em ações aplicáveis: da confiança e transparência para moradores antigos, à inclusão social de novos clientes, passando pelo empoderamento juvenil e eficiência para clientes B2B.
Aqui, o aprendizado é que serviços não são apenas entregues, mas construídos junto às pessoas, respeitando contexto histórico, social e emocional.
1. Clientes atuais — Confiança e Transparência
Cada calçada quebrada sem aviso é uma cicatriz no chão de sua vida. Deseja a escuta, ter respeito pelo patrimônio e ser clara sobre as cobranças.
Proposta de valor: Confiança e transparência. Mostre que cada reparo, atendimento e fatura respeitam a história da comunidade e dos lares.
2. Clientes questionando o pagamento de esgoto — Educação e Valorização Coletiva
Alguns moradores veem a cobrança de esgoto como água que passa pelos bolsos sem retorno. Para eles, pagar é como semear em solo seco esperando frutos tangíveis. Querem entender o valor do serviço e sentir que são recomendados para melhorias locais.
Proposta de valor: Educação e valorização coletiva. Demonstrar como água e saneamento elevam saúde, qualidade de vida e valorização imobiliária, conectando tradição e modernidade.
3. Idosos — Atendimento Inclusivo e Acessível
A conta de água é mais que números: é um mapa da cidade percorrida a vida toda. Linguagem simples, atendimento presencial e previsibilidade transformam ansiedade em confiança. Deseja clareza, simplicidade e suporte humano.
Proposta de valor: Atendimento inclusivo, comunicação adaptada, educação hídrica e financeira, suporte humano consistente.
4. Clientes novos ou em expansão — Inclusão Social
Mora em uma área recém-regularizada, recebe sua primeira conta de água. É como receber um bilhete que diz “você existe", um símbolo de cidadania, dignidade e oportunidade para seus filhos. Deseja água limpa, reconhecimento social e esperança para a próxima geração.
Proposta de valor: Inclusão social: transformar o acesso à água em empoderamento comunitário e melhoria da qualidade de vida.
5. Jovens — Empoderamento Juvenil e Educacional
Desejam estudar, empreender e transformar a própria comunidade. Para eles, um tubo de água é como uma ponte invisível para sonhos e oportunidades. Desejam educação, acesso à informação e ferramentas para mudar o futuro da comunidade.
Proposta de valor: Empoderamento juvenil — ações educacionais, inclusão digital e programas culturais conectando jovens ao serviço de água.
6. Clientes B2B com poço próprio — Eficiência e Soluções Personalizadas
Para o pequeno comerciante local, cada litro de água é como cada grão de areia em sua construção, desperdício ou atraso significa prejuízo direto. Deseja eficiência, soluções personalizadas e previsibilidade não adequadas.
Proposta de valor: Atendimento especializado — integração técnica e gestão de recursos hídricos para clientes estratégicos.
Voltar pra casa
Considerar o contexto social e histórico das comunidades é uma chave para criar relações sustentáveis. Histórias e cenários compartilhados pelos moradores revelaram relações de poder, desigualdades e injustiças históricas: comunidades com 30–40 anos de existência ainda sem água encanada, ligações clandestinas toleradas pela empresa, ou cortes que exercem fricção e desconfiança.
O antropológico permite costurar mundos diferentes, um exemplo de ligações irregulares de água, o desejo de tratamento humanizado e expansão de um negócio de concessão de água e esgoto em estratégias de impacto de longo prazo, construindo valor social e econômico simultaneamente.
Essa experiência evidencia que comunidades marginalizadas têm voz própria e gerenciam poder interno de maneiras complexas.
Para que uma proposta de valor realmente funcione, é preciso respeitar essas dinâmicas, criar confiança e mapear relações de poder, garantindo que serviços essenciais não sejam apenas entregues, mas acompanhados de reconhecimento, participação e dignidade humana.
Referências
- Beaud, Stéphane; Weber, Florence [2007]. Preparar a pesquisa. pp. 44–87. In: Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados etnográficos. Petrópolis, Editora Vozes.Ferreira, L., Vianna, A., Pierobon, C., & Sarti, C.. (2021). Anthropology, desire, and textures of life: an interview with Veena Das. Sociologia & Antropologia, vol. 11, n. 3, pp. 749–789.
Da pesquisa etnográfica ao insight: como transformar histórias em estratégia para UX was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.
