Tornar a interface acessível não basta — o conteúdo que a IA gera também precisa ser. E a WCAG continua sendo nossa melhor aposta.

Legislações como a LBI, ADA e European Accessibility Act reforçam o que todos nós já deveríamos saber: Prover acessibilidade digital é um dever inegociável.
No entanto, o estudo sobre a experiência de acessibilidade digital nos sites brasileiros realizado pela BigDataCorp em parceria com o Movimento Web para Todos prova que ainda estamos falhando coletivamente. Apenas 2,9% dos sites brasileiros foram aprovados nos testes de acessibilidade.
Mas, com a ascensão do novo paradigma da IA, surge também a possibilidade de reverter essa falha coletiva. Com as melhorias de experiência e tecnologia oferecidas por esse novo recurso, podemos criar um ecossistema digital mais acessível e fácil de usar.
Pessoalmente, gosto de ser otimista e pensar neste momento como uma folha em branco, onde talvez seja possível aplicar os princípios de acessibilidade digital corretamente desde o início dos projetos.
O problema do output inacessível
Apesar de a maioria dos grandes players já estar aplicando os critérios básicos da WCAG para possibilitar a navegação e uso da interface de seus produtos (o que já considero uma grande evolução), surge uma nova questão:
Como garantir que o conteúdo criado pela inteligência artificial também será acessível para todos?
Precisamos lembrar que, de acordo com o requisito 02 de conformidade da WCAG, todo o conteúdo precisa ser acessível — não apenas a navegação da interface do agente.
“A Conformidade é apenas para a(s) página(s) web completa(s) e não pode ser alcançada se uma parte da página web for excluída.”
Por exemplo, o Canva consegue gerar imagens diretamente da interface de chat do ChatGPT. Ele gera várias opções e pede para que o usuário escolha uma. No entanto, o agente não gera as descrições de imagem automaticamente.

Um usuário que desconhece a importância deste recurso provavelmente usaria as imagens sem criar a descrição, impedindo a compreensão por usuários com deficiências visuais. O texto na imagem também é uma prática que deve ser evitada.
Nesse exemplo, o usuário interage na criação do conteúdo, mas não conseguirá entender a imagem criada a menos que tome passos extras requisitando que o agente crie a descrição.
Outro possível problema é que um usuário sem conhecimento de acessibilidade não saberia da necessidade de solicitar a descrição e provavelmente seguiria utilizando a imagem na web sem adicionar esse recurso.
Outros problemas de acessibilidade já observados em conteúdo gerado pela IA são:
- Criação de imagens sem texto alternativo e com problemas de legibilidade, como: baixo contraste, texto na imagem, tipografia pequena, etc.Uso indiscriminado de emojis que causa leitura repetitiva e cansativa pelo leitor de telas.Textos com gírias, jargões e palavras em língua estrangeira (falha na clareza da linguagem).Listas, tabelas e hierarquia geral com problemas de semântica: O conteúdo é formatado visualmente como lista ou títulos, mas o leitor de telas não consegue acessar a estrutura de hierarquia lógica (H1, H2, etc.).Uso inconsistente de formatação visual: A falta de padrão para uso de elementos visuais pode criar uma barreira cognitiva e dificultar o escaneamento visual.

A responsabilidade dos vieses na criação do conteúdo
É fácil entender por que os modelos de IA não criam conteúdo naturalmente acessível: eles não possuem boas referências, já que foram treinados em cima de um conteúdo conhecido por ser historicamente inacessível.
Os problemas de acessibilidade presentes nos dados de treinamento, somados à discriminação estatística, pavimentam um caminho perigoso.
Em entrevista ao ITForum, a pesquisadora Dra. Sambhavi Chandrashekar explica:
“Dados sobre pessoas com deficiência quase sempre são descartados dos cálculos por representarem números pequenos.
Quando não há representação no treinamento, o algoritmo simplesmente não aprende sobre elas — e, depois, exclui candidatos e usuários por não ‘encaixarem’ no padrão”

Definindo guardrails para um conteúdo mais acessível
Porém, nem tudo está perdido. Graças ao grande poder de adaptação da IA, designers e engenheiros podem definir guardrails básicos para que o conteúdo gerado seja um pouco mais acessível:
- Definir que o agente não deverá usar palavras em língua estrangeira, gírias ou jargões técnicos.Definir que as respostas enviadas ao usuário devam ser simples o suficiente para serem compreendidas por pessoas com níveis mais baixos de literacia.Para outputs de imagens, definir que qualquer imagem já deve ser gerada em conjunto com a sua devida descrição e que essas já seguem as boas práticas estabelecidas.Definir um tom de voz consistente para o agente, para evitar barreiras cognitivas e de confiança causadas por mudanças abruptas na forma de comunicação.Evitar o uso de emojis que possam causar confusão de sentido ou repetitividade na leitura.Limitar o número de carrosséis e se atentar à navegação e à semântica de componentes interativos gerados no chat.
Essas são apenas algumas sugestões de guardrails. É claro que essas definições não acessibilizam todo o seu produto para todas as pessoas, mas já indicam um passo na direção correta.
O momento é de definição de diretrizes e boas práticas
A criação de produtos com IA é um campo vasto e ainda sem diretrizes específicas e bem determinadas. No entanto, algumas empresas já estão pavimentando o terreno:

A Microsoft lançou um material chamado In Pursuit of Inclusive AI (Em Busca de uma IA Inclusiva) que detalha o impacto dos vieses na IA. Apesar de riquíssimo, o conteúdo ainda não oferece guias objetivos sobre como desenhar produtos com IA de forma acessível.

Além desse material, a Microsoft também desenvolveu a HAX Design Library — uma coleção de 18 diretrizes para a interação Humano-IA. Apesar de não mencionar diretamente critérios de acessibilidade, todas as diretrizes focadas em melhorar a experiência dos usuários também podem ser consideradas formas de melhorar a acessibilidade.

A OpenAI, por sua vez, divulgou uma série de diretrizes de design. Uma das diretrizes citadas é:
“Toda experiência de parceiro deve ser utilizável pelo público mais amplo possível. Acessibilidade é um requisito, não uma opção.”
No entanto, essa diretriz não especifica como definir o que é uma experiência acessível — com diretrizes mais “abertas”, como desenhar e validar objetivamente se as experiências estão acessíveis?
A resposta continua sendo a boa e velha WCAG
Nesse contexto, a WCAG se mantém como o nosso ponto de partida e base para sustentar os nossos esforços de Acessibilidade. Mais do que nunca, devemos nos apoiar nos critérios que já existem para direcionar o desenvolvimento de novos componentes e padrões de interação com IA.
Hoje, a WCAG ainda é, infelizmente, pouco aplicada no contexto de desenvolvimento de produtos digitais. Mas (por enquanto?) ela é a única base objetiva que temos. A sua estrutura de Princípios, Diretrizes e Critérios de Sucesso mensuráveis e objetivos é justamente o que falta como direcionamento para a validação e teste das diretrizes já desenvolvidas.
O paradigma da IA exige agilidade, mas agilidade sem governança resulta em exclusão, como pontuado pela Dra. Sambhavi:
“Se os programas são produzidos dez vezes mais rápido, há menos tempo para pensar em acessibilidade. Isso significa que muitos sistemas simplesmente não funcionarão para PcDs”
O nosso trabalho é garantir que isso não aconteça e que a acessibilidade seja um pilar em todas as discussões de IA, não um pensamento final. Para isso, a WCAG precisa ser a fundação a partir da qual a próxima geração de interfaces digitais será construída.
Errar aqui significa ser excludente, tornando o uso de mais uma nova tecnologia inacessível para a população considerada “fora do padrão”.
Referências
- Legislações de Acessibilidade em vigor no mundo: LBI, ADA e European Accessibility ActPesquisa sobre a experiência de uso de sites por pessoas com deficiência no país realizada pela BigDataCorp em parceria com o Movimento Web Para TodosWCAG: Critérios e requisitos de conformidadeEntrevista da Dra. Sambhavi Chandrashekar ao IT ForumWhat Are AI GuardrailsIn Pursuit of Inclusive AIHAX Design LibraryOpen AI App Design Guidelines
Leituras complementares
- Boas práticas para descrições de imagensAcessibilidade e UX Writing: Como criar conteúdos inclusivosGuia WCAG
IA, Acessibilidade e uma nova chance de acertar was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.
