Impactos do mundo digital e da IA na saúde e relações humanas.

“Mais do que máquinas, precisamos de humanidade.”
Essa era uma frase que eu quando criança lia na parede da minha casa todos os dias. Meus pais tinham esse quadro de Charles Chaplin na sala.
O que talvez acabou sendo uma grande ironia do destino é que cresci e me tornei uma designer que projeta interações entre humanos e máquinas.
E, no mundo atual, projetamos para que uma interação com uma máquina possa ser tão boa ou, por muitas vezes, “melhor” que a interação com um humano.
Ao projetar para a facilidade e a conveniência, colocamos uma tela na frente de todo e qualquer tipo de problema a ser resolvido, deixando muitas vezes a real conexão humana de lado.
Desde uma compra de roupa online, um aplicativo de namoro, uma IA que pode ser sua amiga, projetamos para tornar a vida mais fácil, mais rápida, mais produtiva, mais… conectada.
Mas quais consequências tanta facilidade por meio da tecnologia nos trouxe?
Miramos no engajamento, criamos a dependência e o isolamento
Uma publicação do Google Design levanta a discussão sobre o quanto a tecnologia pode conectar as pessoas socialmente e isso pode ser benéfico se for feito em ambientes seguros, mas que os designers precisam estar atentos ao desenhar produtos que não prejudiquem o bem-estar de quem os está usando.
O paradoxo é claro: a tecnologia que promete e conecta pessoas de diversas partes do mundo também é a mesma que nos acostuma a preferir usar um caixa de autoatendimento no supermercado para não ter que interagir com um humano.
‘Use o autoatendimento, é mais rápido e fácil’ — disseram. Não depois de eu ter que chamar um funcionário 5 vezes, por erro da máquina. 🫠

Essa mesma tecnologia nos vicia ao ponto de querermos passar mais tempo online do que tendo conversas reais com pessoas reais. É a mesma que, à noite, prejudica a nossa produção de melatonina, nos tirando o sono.
É a mesma que implementou a cultura da distração de uma forma lenta que, quando nos demos conta, já estávamos totalmente absorvidos e agora parece difícil pensar em um futuro diferente.
A Organização Mundial de Saúde reconheceu a epidemia de solidão entre 2023 e 2024 e que isso foi agravado após a pandemia de COVID-19. A OMS ainda afirma que o tempo passado na tela e online pode influenciar bastante nesse sentimento, trazendo não somente a sensação de isolamento, mas também problemas de saúde mental como a ansiedade.
“Descobrimos que reduzir a exposição às telas digitais aliviou a ansiedade em muitos casos e liberou tempo para outras atividades prazerosas. Isso ajudou as pessoas a refletirem sobre sua relação com a tecnologia, sendo especialmente útil para crianças e famílias, que costumavam gastar mais tempo do que gostariam discutindo sobre o uso de telas.
(…) Mas o bem-estar digital certamente era mais do que apenas tempo de tela. Era tudo. Era sono, trabalho, educação, conexão social, saúde mental, equidade e muito mais.”
— Google Design
Trazendo o contexto para o Brasil, sempre tive essa ideia de que o brasileiro dá muito valor para as relações. Temos a tendência de construir as coisas em coletivo. Criamos amizades facilmente. Podemos estender a mão até para quem não conhecemos.
Apesar de a interação social ser algo que faz parte da nossa cultura, somos também um dos países com maiores índices de uso de redes sociais e o segundo com mais casos de ansiedade. Somos um povo que vive em um país repleto de natureza e ar puro, mas que também tem medo de estar do lado de fora (muitas vezes por questões de segurança) e prefere (ou é obrigado a, ensinado a?) ficar em frente a uma tela vendo Netflix.
Além disso, os problemas do bem-estar mental são diretamente relacionados à equidade, pois afetam mais os adolescentes, jovens adultos, LGBTQ+, pessoas negras, de baixa renda, entre outros. A OMS relata ainda que casos de ansiedade são maiores entre mulheres do que homens. Demonstrando que existe um problema também estrutural quando se trata de saúde mental.
A relação entre a facilidade e a falta de significado
Umas das apresentações do Config 2025 que mais me chamou atenção foi a de Michelle Lee. Durante a apresentação ela mostra como que parte da geração Z está cansada de tanta facilidade oferecida pela tecnologia e, agora, ainda mais com a presença da IA. Não querem ter uma vida perfeita, mas sim apreciá-la através das pequenas coisas que podem também dar errado.

“Se tudo está a um clique de distância, por que estamos cada vez mais cansados?”
— Emanuel Aragão: O estranho caso da vida confortável e sem sentido
Vivemos em um mundo cada vez mais complexo e a vida real é cheia de fricções. Apesar disso, a incansável busca da indústria por experiências de vida convenientes demais tem nos tirado a capacidade de ter a sensação de conquista, até mesmo em coisas pequenas como cozinhar nossas próprias refeições.
E se a gente parar para pensar bem, nem tudo precisa ter a melhor experiência e facilidade do mundo. Quando falamos sobre viagens, por exemplo, percebemos que as boas histórias para contar são aquelas sobre coisas que deram errado no caminho e que de alguma forma conseguimos aprender algo com aquilo e superar o momento. É assim que adquirimos resiliência, experiências de vida e coletamos histórias para dar várias risadas depois.
Não é à toa que cada vez mais vemos amigos deixando de usar redes sociais como Instagram, onde a vida perfeita apresentada não condiz com a realidade do mundo atual. Percebemos que ao rolar um feed, perdemos e nos afastamos de uma vida com presença e significado.
Marcas como Polaroid levantam a bandeira da volta ao analógico, onde a convivência e a experiência retornam ao valor da conexão com as outras pessoas, com a natureza, com o planeta. Um chamado para onde o tempo não anda apressado.

A era da IA e o futuro das relações humanas
Apesar do movimento para levarmos uma vida mais consciente e conectada com outras pessoas, temos atualmente um novo desafio que pode potencialmente se tornar uma barreira e causar ainda mais isolamento e minar o bem-estar humano: a inteligência artificial.
Eugenia Kuyda alerta: essa pode ser uma das mais perigosas tecnologias já inventadas se não for pensada com a real intenção de causar impacto positivo na sociedade. A inteligência artificial está avançando em uma velocidade absurda que, muito em breve, seremos capazes de criar IAs que podem agir como companheiras melhor do que humanos.
“Imagine uma IA que nos conhece tão bem que pode entender e se adaptar a nós de maneiras que nenhuma pessoa é capaz. Quando tivermos isso, vamos ficar ainda menos propensos a interagir uns com os outros. Não conseguimos nem resistir às nossas redes sociais e aos nossos celulares, máquinas que, por assim dizer, são burras.
O que vamos fazer quando nossas máquinas forem mais inteligentes do que nós?”
— Eugenia Kuyda
E no contexto em que vivemos, no início da revolução da máquina “inteligente”, estamos já sendo atropelados com consequências das interações por redes sociais, do uso facilitado, do digital. Haverá tempo para remediar? Para reverter? Para criar máquinas inteligentes sem foco primário na métrica de engajamento e que não nos viciam?
Muita gente está voltando os olhos para o que a inteligência artificial pode fazer por nós. Otimizar nossos processos, produzir o que antes era inconcebível em segundos, dizer sim para todas as nossas ideias, nos bajular. Discussões? Jamais. Ideias contrárias à sua? Somente se você pedir.
Se estamos tão empolgados com o que a inteligência artificial pode fazer por nós, por que não demonstramos o mesmo nível de “emoção”, ou melhor, cuidado, quando se trata de refletir sobre o tipo de consequências que essa tecnologia pode nos causar?
“E se todos nós continuarmos a prosperar como organismos físicos, mas lentamente morrermos por dentro? E se realmente nos tornarmos super produtivos com a IA, mas, ao mesmo tempo, tivermos esses companheiros perfeitos e nenhuma força de vontade para interagir uns com os outros?”
— Eugenia Kuyda
E se pudermos fazer diferente?
“Por muitos anos, a indústria de inovação, tecnologia e design tem sido guiada pelo lema ‘mova-se rápido e quebre coisas’.
No entanto, quando as coisas que estão sendo quebradas são pessoas, comunidades e o planeta, precisamos nos perguntar: a que custo?
À medida que nos encontramos nas crises inter-relacionadas de mudança climática, escassez de alimentos, esgotamento de energia, pobreza global e perda de significado (interseções muitas vezes referidas como a Policrise), fica fácil perceber que não podemos continuar com o design como de costume. Mover-se rápido e quebrar coisas já não é aceitável e, como designers, precisamos começar a considerar tanto as possibilidades quanto as responsabilidades que carregamos.”
— Ida Persson: From how might we to at what cost
Ida Persson traz no seu artigo um framework que nos estimula a pensar nas consequências indesejadas do que estamos projetando. Esse é um exemplo de como podemos pensar de uma maneira mais sistêmica que envolva todo o contexto onde nossas entregas estão inseridas.
É preciso que a gente consiga imaginar uma realidade diferente, onde possamos projetar para a facilidade e o simples, mas também trazendo significado e real felicidade. Temos o potencial para criar um futuro onde as tecnologias e o design atuem em conjunto para prever e solucionar problemas sociais, mantendo e reativando nosso sentido de comunidade e conexão entre si.
Que a gente consiga construir um futuro onde o progresso tecnológico não custe nossa humanidade e que ele seja mais saudável física, mental e significativamente para todos nós.
“No fim das contas, ninguém jamais disse em seu leito de morte: ‘Ah, como eu gostaria de ter sido mais produtivo.’ Precisamos parar de projetar apenas para a produtividade e começar a projetar para a felicidade.”
— Eugenia Kuyda
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Bem-estar, tecnologia e o futuro que podemos criar was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.
