Como a linguagem da sua interface pode estar excluindo pessoas sem você perceber.

Quando a obrigatoriedade de acessibilidade digital foi imposta às empresas de produtos digitais, muita gente se estressou.
A acessibilidade sempre foi um tema polêmico, considerado complicado por times de tecnologia e experiência do usuário (UX). Não por falta de vontade, mas pelas mudanças que precisam ser feitas para criar ou adaptar produtos, features e comunicações para serem verdadeiramente úteis e usáveis por todos os tipos de pessoas.
Se o assunto é texto, informação escrita e instrucional, é ainda mais comum que stakeholders, designers e desenvolvedores não percebam as mudanças essenciais que o conteúdo acessível exige. Muitas vezes, isso acontece por falta de prática ou pelo peso de outras prioridades no desenvolvimento ágil.
Honestamente, o uso de verbos sensoriais está quase no fim da lista de preocupações, ainda mais em times sem um UX Writer ou Content Designer dedicado.
No meu caso, por exemplo, sou a única Content Designer em um time de mais de 12 product designers e uma legião de desenvolvedores, sem contar PMs e POs que eventualmente querem dar pitaco no conteúdo.
Com as imposições legais da European Accessibility Act (EAA) — que prevê multas para quem não cumprir os critérios de acessibilidade — começou uma verdadeira corrida contra o tempo, minha junto ao time de localização, para mapearmos e “remediarmos” conteúdos problemáticos.
Começamos pelo básico: os verbos sensoriais.
O que são verbos sensoriais?
Imagine abrir um app e encontrar a mensagem: “Veja as ofertas abaixo.” Agora imagine que você está usando um leitor de tela. O verbo “ver” já não faz tanto sentido, certo?
Esse é só um exemplo do uso comum e problemático dos verbos sensoriais em produtos digitais.
Também conhecidos como sense verbs ou verbos de sentido, esses verbos são aqueles que descrevem os cinco sentidos e são parte da linguagem cotidiana, muitas vezes, inclusive usados com boas intenções. Mas quando se trata de acessibilidade e inclusão, eles podem se tornar barreiras invisíveis.
A lista é extensa. E em textos para produtos digitais, eles costumam aparecer em frases como:
- “Veja as novidades da semana”,“Ouça o que nossos clientes dizem”,“Sinta a experiência”.
A intenção por trás desse tipo de linguagem é, muitas vezes, criar uma conexão emocional ou reforçar uma mensagem de marca. Porém há um problema importante:
Nem todas as pessoas vivenciam o mundo da mesma forma sensorial.
As múltiplas faces da exclusão sensorial
Pessoas com deficiência visual, por exemplo, não podem “ver” o que está na tela. Logo, instruções com verbos como “veja” se tornam confusas ou até inúteis, uma vez que leitores de tela transformam o texto em áudio, mas o verbo não faz sentido para quem “ouve” a experiência de um produto.
De forma similar, pessoas com deficiência auditiva não podem “ouvir” alertas ou instruções que dependem exclusivamente do sentido da audição. Nesse caso, se não houver legendas ou textos alternativos, sua experiência é 100% prejudicada.
Mas o problema vai além do físico. Algumas deficiências intelectuais ou cognitivas, como dislexia, transtorno do processamento sensorial, autismo e outras, podem dificultar a interpretação de metáforas sensoriais ou instruções indiretas.
Outro ponto, menos explorado, mas muito relevante, é a sinestesia, uma condição neurológica em que as sensações se misturam. Algumas pessoas “veem” sons ou “sentem” cores. Nesse contexto, linguagens que usam metáforas sensoriais confusas podem criar experiências desorientadoras para esses usuários.
Essa diversidade sensorial e cognitiva reforça a necessidade de pensarmos na linguagem que usamos em interfaces digitais como um vetor fundamental de acessibilidade.

Pessoas com deficiência podem não acessar o conteúdo por meio do sentido sugerido pelo verbo. Isso torna a mensagem de um produto pouco acessível, uma vez que o conteúdo assume um tipo de experiência sensorial que nem todos podem ter, e consequentemente menos relacionável e confusa.
Isso porque o usuário pode se sentir excluído ou fora da experiência sugerida, uma vez que você está induzindo uma experiência que não está disponível para aquele usuário.
Esse tipo de falha pode parecer pequeno, mas somado a outros detalhes, gera frustração e falta de confiança na interface — especialmente para pessoas que já enfrentam barreiras no uso cotidiano de produtos digitais.
O papel do conteúdo
Como profissionais de conteúdo para produto, nosso papel vai além da clareza e consistência. Devemos garantir que toda a experiência digital seja inclusiva, acessível e humana. E isso também se refere a evitar o uso de verbos sensoriais.
Essa ação, ao contrário do que muitos afirmam, não significa empobrecer a linguagem, mas sim torná-la mais acessível, precisa e universal. É uma escolha de design intencional, que deve ser discutida e aplicada em conjunto com times de produto, design e desenvolvimento.
Temos a responsabilidade de revisar padrões de linguagem que reforçam barreiras sensoriais. Cabe a nós colaborarmos com times de design e desenvolvimento para oferecer alternativas inclusivas, propor guidelines e boas práticas nos times de conteúdo e claro, educar stakeholders sobre linguagem acessível e sua importância.
Como evitar verbos sensoriais
Antes de qualquer coisa, pense na experiência como algo que deve ser fisicamente, cognitivamente, intelectualmente e socialmente acessível.
Diante disso, evite metáforas sensoriais exclusivas (como “Sinta a potência” ou “É de encher os olhos”) em contextos funcionais oferecendo alternativas equivalentes como legendas, descrições de imagem e transcrições, fundamentais quando o conteúdo depende de mídia sensorial. Sempre que possível, opte por verbos de ação neutros, como “conferir”, “acessar”, “explorar”, “descobrir”, “experimentar”, “entender”, “encontrar”.
A linguagem inclusiva não é sobre “ser politicamente correto”, é sobre garantir que mais pessoas possam se sentir parte da experiência.
Em um mundo onde a acessibilidade digital é uma exigência legal (como a EAA na União Europeia e a Lei Brasileira de Inclusão), esse cuidado não é só desejável: é mandatório.
Como profissionais de conteúdo, temos a obrigação de construir produtos digitais que acolham e respeitem as múltiplas formas de perceber o mundo — que começa, em grande parte, pelas palavras que escolhemos.
Referências
- W3C Web Accessibility Initiative (WAI), guia de boas práticas para acessibilidade de conteúdoEuropean Accessibility Act (EAA), texto oficial da legislação europeia sobre acessibilidade digitalLei Brasileira de Inclusão (LBI), política nacional brasileira para inclusão da pessoa com deficiênciaNielsen Norman Group, artigo sobre escrita acessível e conteúdo para UXAmerican Speech-Language-Hearing Association (ASHA), informações sobre sinestesia e condições neurológicasNeurodiversity in UX, artigo e podcast
O problema dos verbos sensoriais em produtos digitais was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.
